A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões

A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões

Criado em 1837 pelo dinamarquês Hans Christian Andersen, o conto da Pequena Sereia tem origens bem diferentes do desenho da Disney. A história original traz contornos sangrentos, onde o amor verdadeiro capaz de transpor os limites de terra e mar é esquecido tão profundamente quanto o mundo subaquático. 

Na história de Andersen, a Bruxa do Mar corta a língua de Ariel, que perde a voz. Para ter o tão sonhado par de pernas a sereiazinha precisa passar por uma transformação dolorosa, no qual sua cauda é rasgada ao meio. Como se não bastasse os tenebrosos sacrifícios feitos pela mocinha, seus passos sob as novas pernas provocam dores lancinantes e sangrias torrenciais. 

Ao final, as irmãs de Ariel arrancam os próprios cabelos para oferecer a bruxa com o objetivo de tornar a caçula uma sereia novamente. A bruxa, então, dá uma faca à protagonista para que ela mate o príncipe e volte a ser sereia, no entanto, magoada por ter sido trocada pelo seu grande amor, Ariel se mata ao pular de um abismo em direção ao mar. 

Em A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões, a autora Louise O’neill resgata as origens macabras de Ariel e as  mistura com traços de discussões contemporâneas. Conhecida por escrever enredos que escancaram aspectos delicados envolvendo o ser mulher na sociedade, Louise é criadora de protagonistas femininas inseridas em histórias que rompem a calmaria criada para aprisionar e controlar a liberdade feminina. 

Autora de distopias e ficções contemporâneas, a escritora se aventura pelos Contos de Fadas para inundar a história da sereiazinha centenária de feminismo e discussões de igualdade de gênero. 

Usando o mesmo enredo sombrio de Andersen, Louise transformou o mundo de Ariel em um reino misógino, onde as sereias não tem outra função senão serem belas para conseguir matrimônio. 

Gaia é uma jovem prestes a fazer 16 anos e se casar com Zale, um homem influente muito mais velho. Sua beleza é cobiçada pelas irmãs e motivo de glória para seu pai, que faz de suas filhas e de todas as mulheres do reino peças de arte que pouco tem o direito de serem  exceto belas, magras e caladas. 

Elas precisam passar por rituais torturantes da beleza, que envolvem costurar pérolas em suas caudas e comer não mais do que duas colheradas por refeição. A todo momento durante a leitura somos lembrados que a existência da protagonista e toda personagem feminina são propriedades do Rei dos Mares e seus  tritões. 

Antes de Gaia  nascer sua mãe era a sereia mais bonita do reino, casou-se com o rei quando tinha 16 anos e ele estava em seus 60. Apesar da vida sufocante que levava, a rainha ousou manter o fascínio pelo mundo dos humanos e sempre que podia escapava para observá-los da superfície. 

Mas no primeiro aniversário da filha caçula, a mãe de Gaia não retorna mais e o Rei dos Mares anuncia que a esposa foi capturada pelos humanos. Enquanto crescia a pequena sereia ouve incessantemente que sua mãe a abandonou e encontrou seu fim trágico graças à sua natureza indomável.

Apesar disso, Gaia cultiva o mesma curiosidade da mãe e quando chega a sua vez de subir à superfície, no aniversário de 16 anos, logo se apaixona pela vida acima da água e por um belo rapaz humano. 

O resto da história já é conhecida a centenas de anos, entretanto o que vemos no decorrer da narrativa de Louise é aterrorizador por motivos distintos. Ao se agarrar a esperança de ser resgatada pelo amor verdadeiro e viver em um lugar em que poderá ser livre, Gaia descobre que a vida entre os humanos não é muito diferente da vida que ela estava tentando escapar. Na sociedade terrestre é reservado à mulher o papel de coadjuvante e de  culpada por qualquer desventuras que possam acontecer em suas vidas. 

Esse vislumbre da realidade começa a aparecer à medida em que a percepção da personagem com relação ao seu príncipe encantado muda. Quando mais Gaia conhece Oliver mais ela percebe que o homem com o qual sonhou ser gentil e corajoso não passa de um covarde fugitivo da realidade, mimado pelas riquezas e privilégios dados pela vida. 

Nas páginas deste livro registra-se  não um conto de fadas, mas a brutalidade que insiste em permanecer em todas as partes da existência de uma mulher. Ela reitera-se nos padrões de beleza inalcançáveis que ceifam nossa individualidade e amor próprio,  no sufocamento de nossas vozes e opiniões, na apropriação de nossos corpos e quereres. 

Ser mulher, seja nas profundezas marítimas ou em terra firme, é um ato de resistência. A história de Louise O’Neill junta-se ao coro de mulheres no mundo todo que não mais aceitam ser silenciadas. Em meio a sereias, tritões e feitiços, Gaia ousa descobrir quem é de verdade e a derrubar as muralhas que acovardam o ímpeto do querer ser si mesma. 

*Ilustração desenvolvida por Laura Prado especialmente para o Vira-Tempo.

A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões

A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões

  • Autor: Louise O'Neill
  • Tradução: Fernanda Lizardo
  • Editora: Darkside
  • Ano de Publicação: 2019
  • Nº de páginas: 224

Esqueça as histórias sobre sereias que você conhece. Esta é uma história diferente ― e necessária. E tudo começa no fundo do mar. Com uma garota chamada Gaia, que sonha em ser livre de seu pai controlador, fugir de um casamento arranjado e descobrir o que realmente aconteceu à sua mãe desaparecida. Em seu aniversário de quinze anos, quando finalmente sobe à superfície para conhecer o mundo de cima, Gaia avista um rapaz em um naufrágio e se convence de que precisa conhecê-lo. Mas do que ela precisa abrir mão para transformar seu sonho em realidade? E será que vale a pena? Aqui, a história original de Hans Christian Andersen ― e também suas versões coloridas e afáveis em desenhos animados ― é reimaginada através de lentes feministas e ambientada em um mundo aquático em que mulheres são silenciadas diariamente ― um mundo que não difere tanto assim da sociedade em que vivemos. No reino de ilusões comandado pelo Rei dos Mares, as sereias não recebem educação, não têm direito de fala, devem se encaixar em um padrão de beleza impossível e sempre sorrir. É neste cenário que a autora irlandesa Louise O’Neill apresenta uma história sobre empoderamento e força feminina.

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