Os universos fantásticos atraem a predileção de muitos leitores em razão dos mundos extraordinários construídos por suas narrativas. Entretanto, a pouca diversidade étnica e cultural é um traço típico desse gênero, que é composto, em sua maioria, por autores brancos com referências eurocentradas. Não é difícil encontrar reinos e cortes que nos lembram da Idade Média europeia e mocinhos e mocinhas de pele porcelana e olhos claros.
Esse traço deturpa uma das grandes virtudes dos livros: a de fornecer um abrigo para aqueles que procuram serem ouvidos e representados. Porém, nas últimas décadas o afrofuturismo tem revivido essa qualidade.
Fábio Kabral, escritor de ficção científica e fantasia e autor dos livros “Ritos de Passagem (Giostri, 2014)” e “O Caçador Cibernético da Rua 13 (Malê, 2017)” , definiu, em seu artigo “AFROFUTURISMO:Ensaios sobre narrativas, definições, mitologia e heroísmo”, esse movimento literário como a mescla entre mitologias e tradições africanas com narrativas de fantasia e ficção científica.
O afrofuturismo tem quatro características principais: o protagonismo de pessoas negras, o protagonismo de autores e autoras negros, centralidade da cultura, das espiritualidades, das tecnologias e filosofias africanas e narrativas de ficção científica e ficção fantástica.
Mesmo sendo um escritor de histórias afrofuturistas Fábio disse, durante palestra sobre afrofuturismo no Festival de Literatura Pop (FLIPOP), organizado pela editora Seguinte, selo jovem da Companhia das Letras, que também contou com a presença do escritor Alê Santos e a mediação do tradutor Petê Rissatti, que em seus livros é necessário esclarecer ao leitor as origens africanas dos personagens:
É até redundante falar que nesse universo todo mundo é negro. E por que descrever? Porque senão as pessoas não entendem e pensam no padrão imposto. O padrão europeu que determina que todos os seres humanos são brancos de olhos claros e cabelos loiros.
Pantera Negra, um dos filmes de maior sucesso recente, quebrou o padrão predominante da indústria cinematográfica e é um dos expoentes mais conhecidos da produção afrofuturista atual. Para Alê, escritor de livros de fantasia e ficção científica e colaborador da Mundo Estranho, Vice Brasil, Yahoo e do The Intercept, o filme do universo cinematográfico da Marvel é revolucionário.
O que o Pantera Negra traz de inovação em si é mostrar que história de preto faz dinheiro. Eu acredito que Hollywood e a indústria de cinema e TV absorveram essa ideia e eles expandiram não só pro afrofuturismo, mas também para contratar novos autores negros. Isso rompeu uma barreira e abriu oportunidades que deveriam já existir, mas que ninguém acreditava.
Outros representantes do afrofuturismo internacional são Nnedi Okorafor, autora de Bruxa Akata (2018) e Binti (2015), N.K.Jemisin, primeira pessoa a ganhar por três vezes consecutivas o Hugo Awards, a principal premiação de ficção científica e fantasia do mundo, e o ilustrador Manzel Bowman. Aqui no Brasil se destacam a escritora Lu Ain Zaila, autora da duologia Brasil 2408, a cantoria Xenia França e o ilustrador Rodrigo Cândigo.
Mas apesar de existente, o Brasil está longe de se tornar uma potência do afrofuturismo. Nosso país se esforça para suprimir a cultura e ancestralidade africana adotando a narrativa e o padrão branco como ideias a serem seguidas e reproduzidas. Kabral acredita que, por esse motivo, a produção brasileira é quase inexistente.
O Brasil é o caso incrível, no qual a gente fala para caramba de afrofuturismo em eventos e não tem quase ninguém fazendo. Nas oficinas de escrita afrofuturista que eu e Karol (Karolina Desireé, filósofa e produtora cultural) ministramos um dos nossos maiores esforços é convencer, principalmente as pessoas pretas, que elas podem criar coisas novas.
Em um de seus artigos, Fábio afirma que o herói de rosto africano representa a heroína e o herói descendentes de rainhas e reis divinos, que sobreviveram aos horrores da travessia e da escravidão e hoje lutam para se impor no mundo e para orgulhar a si e aos seus ancestrais.
A autora afro-americana Tomi Adeyemi fez dessa premissa a principal característica e motivação da protagonista de seu livro Filhos de Sangue e Osso. Zélie é uma garota maji do reino de Orïsha, onde um dia a magia vinda das divindades africanas concedia aos divinais poderes que os permitiam gerar chamas, controlar a água e invocar almas, por exemplo. Entretanto, a magia desapareceu e por ordens do rei milhares de divinais, incluindo a mãe de Zélie, foram mortos.
O livro narra a empreitada da protagonista, ao lado de seu irmão e uma princesa fugitiva, para trazer a magia de volta e combater a monarquia que fez seu povo sofrer.
Baseado na cultura iorubá, a inspiração para criar o universo de Orïsha surgiu no Brasil, enquanto a autora perambulava por uma loja de presentes em Salvador, Bahia. Fugindo de uma chuva torrencial Tomi disfarçava a fuga do aguaceiro procurando por algo interessante em uma loja de presentes. Seu olhar passeou por toda a loja até parar em uma imagem de um Orixá, e sua imaginação voou longe para um universo onde deuses negros e leões gigantes imperavam em selvas verdejantes.
A história de Zélie desenvolve uma saga de fantasia e magia inspirada na cultura africana e também na vida e desafios do povo negro dos Estados Unidos e do mundo. A perseguição dos maji em Orïsha é, como a própria autora descreve, uma alegoria das experiências negras modernas.
Tomi deixou reservado nas páginas finais, antes mesmo dos agradecimentos, um relato emocionante que explica a motivação por trás de sua criação:
Filhos de Sangue e Osso foi escrito durante um período em que eu sempre assistia aos noticiários e via as histórias de homens, mulheres e crianças negros e desarmados sendo alvejados pela polícia. Eu sentia medo, raiva e desespero, mas este livro foi uma das coisas que me permitiram sentir que eu podia fazer alguma coisa a respeito.
Esse anseio resultou em uma narrativa avassaladora permeada por conflitos intrínsecos ao medo. Assim como os autores de sua geração, Adeyemi construiu um vilão mais humanizado, passível de empatia. A existência desse personagem não é justificada pela maldade em seu estado puro, mas um emaranhado de traumas, muito parecidos com o da heroína.
O rei Saram teve sua família morta pela magia e Zélie viu sua mãe morrer pelas forças do rei. A história é movida pelas decisões de cada personagem e como cada um decidiu usar a própria dor. O rei transformou a tristeza em ódio, enquanto Zélie encontrou no reconhecimento de suas angústias a necessidade de restaurar o reino de Orïsha, que um dia conviveu com a magia pacificamente.
O que a história de Zélie, do rei Saran e dos divinais ensinam é que a maneira como transformamos nossa dor é um fator determinante para construir o futuro. Todos temos machucados profundos provocados pela vida, mas cabe a nós escolhermos a maneira como elas irão cicatrizar.
*Ilustração desenvolvida por Dapenha especialmente para o Vira-Tempo.
Zélie Adebola se lembra de quando o solo de Orïsha vibrava com a magia. Queimadores geravam chamas. Mareadores formavam ondas, e a mãe de Zélie, ceifadora, invocava almas.
Mas tudo mudou quando a magia desapareceu. Por ordens de um rei cruel, os maji viraram alvo e foram mortos, deixando Zélie sem a mãe e as pessoas sem esperança.
Agora Zélie tem uma chance de trazer a magia de volta e atacar a monarquia. Com a ajuda de uma princesa fugitiva, Zélie deve despistar e se livrar do príncipe, que está determinado a erradicar a magia de uma vez por todas.
O perigo espreita em Orïsha, onde leopanários-das-neves rondam e espíritos vingativos aguardam nas águas. Apesar disso, a maior ameaça para Zélie pode ser ela mesma, enquanto se esforça para controlar seus poderes — e seu coração.
Filhos de sangue e osso é o primeiro livro da trilogia de fantasia baseada na cultura iorubá O legado de Orïsha e está sendo adaptado para o cinema.
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