As histórias de fantasia têm a habilidade de criar mundos e seres completamente novos, dos quais de tão minuciosamente detalhados nos fazem acreditar serem reais pelo tempo em que nos prendemos entre suas páginas. Esse aspecto se torna uma profunda fonte de deslumbramento para os leitores fãs deste gênero. No entanto, a autora brasileira Fernanda Nia em seu livro Mensageira da Sorte se aventura por outros caminhos da fantasia ao usar a realidade como plano de fundo.
Descendente de uma geração de leitores que deleitaram-se com livros de fantasia urbana como Harry Potter, Nia traz para sua escrita elementos que aproximam e dão ao leitor a sensação de pertencimento ao mundo em que seus personagens vivem.
Aproveitando o atual cenário carioca para salpicar de fantasia as tensões do dia a dia, Mensageira da Sorte é repleto de referências do Rio de Janeiro contemporâneo. A personagem principal, Sam, começa sua aventura em pleno Carnaval, quando no meio de um protesto contra a AlCorp, empresa que domina a política e economia carioca, se torna acidentalmente uma mensageira temporária do Departamento de Correção da Sorte, empresa extranatural responsável por equilibrar a sorte e o azar das pessoas.
Sam começa, então, a distribuir presságios de sorte para os escolhidos pelo Departamento. O primeiro a receber um presságio é Leandro, seu vizinho e colega de classe. Por meio de seu canal no Youtube, o garoto participa e mobiliza protestos contra a AlCorp, colocando a si em perigo. A nova mensageira terá que contar com os presságios do Destino para proteger a vida do amigo.
A idealização da premissa sobrenatural sobre o Departamento da Sorte e o amor da autora por fantasia urbana tornaram estes dois elementos inerentes um ao outro. De forma espontânea os obstáculos a serem vencidos por Sam se materializaram na forma de problemas vividos por nós todos os dias.
Isso é uma parte divertida para mim: procurar soluções mágicas para os nosso problemas reais. Como se isso fosse possível!
Para criar os conflitos e a vilania do livro Fernanda não precisou ir muito longe ou fazer longas pesquisas, bastou olhar para os protestos de 2013 e para uma “vida inteira vivendo em um Rio de Janeiro caótico”, como ela mesma descreve.
Ao criar o DCS e sua estrutura Fernanda deu uma resposta fantástica as muitas indagações feitas por nós ao longo da vida, o Destino se encarrega de mudar os caminhos de uma mulher alcoólatra prestes a morrer, de um homem desempregado em desespero e de uma menininha prestes a se envolver em um desastre.
Tais acontecimentos são corriqueiros em nossa sociedade e o “Por que eu? Por que comigo?” perpassam por nossos pensamentos a todo o momento.
Acredito que todas as histórias que contamos – todas as que eu tento contar, pelo menos -, independentemente de serem fantasia ou não, estão de alguma forma tentando trabalhar questões reais e importantes que sentimos em nosso próprio mundo. Numa história que trata de Destino, acaba sendo inevitável falar das injustiças que acontecem com os azarados.
O caráter realista do enredo é enriquecido por seus personagens. O protagonismo YA quase sempre segue a mesma cartilha: atormentados por acontecimentos traumatizantes os personagens centrais saem em jornadas desconhecidas em busca de si mesmos e descobrem habilidades que os fazem seres poderosos e mártires de grandes causas. Leandro e Cassandra fogem do arquétipos de mocinhos usuais. Sam não é uma protagonista forte, capaz de resolver todos os problemas e Leandro não é o mocinho perfeito e mau humorado, cuja única função é salvar a mocinha de todos os perigos.
A história se preocupa em descartar o preto e branco e pincelar seus personagens de diferentes tons. Se nos enredos a que estamos acostumados os vilões são movidos pelos próprios interesses e se deliciam com as maldades que praticam pelo caminho, no livro de Nia as motivações que provocam os conflitos da história tornam os antagonistas mais humanos do que unicamente maus.
Se os fins justificam os meios é uma reflexão que temos ao longo da leitura. Quando as pontas soltas começam a se atar e as razões por trás dos acontecimentos vem a luz, as essências dos personagens são expostas e nos ensinam que os nossos conceitos de sorte e azar, bondade e maldade, são um recorte muito raso da complexidade da vida humana.
A autora conseguiu, por meio da fantasia, ilustrar de forma simples as questões que fazem da realidade brutalmente imperfeita. Não à toa Mensageira da Sorte foi escolhida como o primeiro livro nacional a ser publicado pela Plataforma 21, selo jovem da V&R Editoras. O trabalho de Sam é entregar presságios da sorte, mas sua história acabou por ser um presságio para a criadora.
Antes mesmo de publicar meus primeiros livros (a série do Como eu realmente), eu já trabalhava com a meta de escrever e publicar um livro para o público jovem-adulto. Demorou alguns anos para eu estar pronta para conquistar essa meta, mas não poderia ter sido melhor. Há muito caminho pela frente, e a profissão de escritora não é das mais fáceis, mas posso dizer que, no momento, me sinto realizada.
*Ilustração desenvolvida por Cath Gomes especialmente para o Vira-Tempo.
A SORTE É IMPREVISÍVEL Em pleno Carnaval carioca, durante uma confusão em um protesto contra a AlCorp, Sam passa a ser uma mensageira temporária no Departamento de Correção de Sorte, uma organização extranatural secreta incumbida de nivelar o azar na vida das pessoas. Para manter esse equilíbrio, os mensageiros devem distribuir presságios de sorte para alguns escolhidos. E o primeiro “cliente” de Sam é justamente o seu novo vizinho e colega de classe, Leandro. O garoto é um youtuber em ascensão e a ajuda dela, na forma de uma mensagem sobre nada menos que paçoca, o impulsiona a fazer um vídeo que o levará para o auge da fama. O que Sam não sabe é que Leandro também é engajado nos protestos contra a corrupção da AlCorp, sem se preocupar com os riscos que possa correr ou com as chances que tem dado ao azar, e a garota se vê obrigada a usar a sorte do Destino para protegê-lo. Perdida entre seus sentimentos por Leandro e a culpa pela morte de seu pai, Sam começa a compreender a linha tênue entre o livre-arbítrio e o acaso. Com uma boa dose de sarcasmo, ela embarca na dura jornada para desmascarar o que está deteriorando o sistema da Justiça, tanto a natural quanto a extranatural. Em meio a uma rede de intriga, corrupção e poder, a mensageira da sorte precisará fazer as pazes com o passado e lutar até o fim para que a balança do Destino se equilibre outra vez.
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