Em 1868, na Câmara dos Comuns, sede do parlamento inglês, um de seus membros, o economista e filósofo britânico John Stuart Mill, se levanta e começa a proferir um discurso cheio de críticas às políticas praticadas pelo governo na Irlanda.
É, talvez, de muita cortesia chamá-los de utópicos, eles deveriam antes ser chamados de distópicos, ou cacotópicos. O que é comumente chamado de utópico é algo bom demais para ser viável; mas o que eles parecem favorecer é demasiado mau para ser viável.¹
O “distópico”, citado por Mill há mais de duzentos anos, hoje é um conceito apossado pela literatura moderna e revivido centenas de vezes nos livros de maior sucesso entre jovens leitores.
Os autores distópicos do século XX, oriundos de sociedades fragilizadas pelo pós-guerra e pelos problemas causados a partir da Revolução Industrial, deixaram para trás os ideais utópicos e passaram a escrever obras críticas e pessimistas sobre sociedades completamente destruídas por catástrofes ou revoluções, oprimidas por condições de vida deploráveis e governos totalitários.
Livros como 1984, de George Orwell, Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Husley e Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, retratam o caráter corruptor das supostas buscas por sociedades perfeitas, que nos deixam mais próximos do apocalipse do que do paraíso.
No século XXI a distopia voltou às prateleiras, desta vez contando a saga de heróis adolescentes em futuros condenados pelo domínio de reinos e repúblicas. Assim como os precursores do gênero, os autores da jovem guarda buscam intensificar as características da sociedade e, em sua maioria, dividem a população em distritos, tipos de habilidades e castas, por exemplo. A Seleção, Jogos Vorazes e Rainha Vermelha são três das séries distópicas mais populares nos últimos anos.
No livro O Ceifador, escrito pelo americano Neal Shusterman, a distopia flerta com a idealidade utópica. A humanidade aprendeu tudo o que precisava e passou a reunir o conhecimento adquirido ao longo de sua existência na Nimbus Cumulus, uma espécie de evolução da nuvem, dando a este superdrive a sabedoria necessária para governar e garantir sociedades equilibradas e justas.
Neste novo mundo as mazelas que ameaçavam o bem coletivo foram erradicadas. Não existem mais guerras, desigualdade social, governos corruptos e a procura pelo elixir da vida finalmente acabou, pois todos gozam da vida e juventude eternas. Os únicos capazes de pôr fim às vidas humanas são os ceifadores.
Os aprendizes adolescentes Rowan e Citra precisam aprender, contra sua vontade, a arte de “coletar”, ou seja, a arte de matar. A empreitada dos dois revela que em um mundo no qual a morte não é mais um destino certeiro, a habilidade de matar continua sendo objeto de medo, cobiça e poder.
Apesar de conquistar o conhecimento absoluto e vencer as imperfeições mundanas, os seres humanos não conseguiram vencer a própria natureza. A ganância, a vaidade, a covardia e o egoísmo ainda habitam a sociedade imortal.
A essência humana transfigurou o Eldorado de Shusterman, cobiçado por aqueles amedrontados pelo fim, em uma perturbadora distopia. A autoridade de manipular a eternidade joga cara ou coroa com a morte como se ela fosse uma moeda de duas faces. Citra e sua mentora, Curie, enxergam o lado incrustado com o fardo inquietante de seus deveres. Já Rowan luta para preservar sua consciência enquanto participa de sessões de matanças em massa e convive com ceifadores que se comportam como deuses e sentem prazer em matar, impregnando-o de sadismo e deleite.
Em O Ceifador saboreamos um aperitivo do que seria o mundo perfeito e nos surpreendemos quando o paraíso que tanto almejamos se torna intragável e sem propósito algum. A monotonia da existência infinita e a manutenção da vaidade humana por centenas de anos tornou o sonho do “para sempre” em uma sina que rogamos para não chegar.
*Ilustração desenvolvida por Roberta Gomes especialmente para o Vira-Tempo.
A humanidade venceu todas as barreiras: fome, doenças, guerras, miséria… Até mesmo a morte. Agora os ceifadores são os únicos que podem pôr fim a uma vida, impedindo que o crescimento populacional vá além do limite e a Terra deixe de comportar a população por toda a eternidade. Citra e Rowan são adolescentes escolhidos como aprendizes de ceifador - um papel que nenhum dos dois quer desempenhar. Para receberem o anel e o manto da Ceifa, os adolescentes precisam dominar a "arte" da coleta, ou seja, precisam aprender a matar. Porém, se falharem em sua missão - ou se a cumplicidade no treinamento se tornar algo mais -, podem colocar a própria vida em risco.
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