Publicado pela primeira vez há mais de 30 anos, em 1985, “O Conto de Aia” (The Handmaid’s Tale, em inglês), livro da canadense Margaret Atwood, fixou posição entre os livros mais vendidos no Brasil durante todo o ano de 2018 e o primeiro semestre de 2019.
Margaret Atwood é uma das intelectuais mais respeitadas e conhecidas do Canadá. Autora de quase sessenta livros, entre eles romances, poesias, contos, livros infantis e críticas literárias, ganhadora do Booker Prize, o prêmio mais importante do livro do Reino Unido, e defensora dos direitos das mulheres, Atwood é a personificação da transgressão, reunindo em si, enquanto mulher, tudo de mais ameaçador para o status do poderio da sociedade que criou na ficção.
A República de Gilead nasceu após um golpe de Estado orquestrado por uma seita cristã fundamentalista, que assassinou o presidente e os congressistas americanos e instaurou um regime totalitário e teocrático. O que antes eram os Estados Unidos da América moderno se tornou uma sociedade oprimida, típica do século XVII, tendo como pilar fundamental o cerceamento de direitos e a segregação das mulheres férteis e inférteis em categorias e funções estabelecidas pelo Estado.
No topo da dinâmica do poder doméstico estão as cônjuges inférteis dos Comandantes, conhecidas como Esposas, que usam vestidos azuis para designar a posição de autoridade dentro das casas. À elas é concedido o gerenciamento do lar e sob seus olhares vigilantes estão as mulheres de categorias inferiores, entre elas as criadas de verde chamadas de Marthas.
Os danos ambientais causados por catástrofes nucleares tornaram grande parte das mulheres estéreis. A gestação de um filho se tornou um fenômeno tão raro que precisa ser protegido e seu acontecimento garantido por todos. Os vestidos vermelhos e toucas brancas de abas largas, como antolhos nos cavalos, sinalizam aquelas poucas capazes de gerar. Estas são as aias, mulheres – receptáculos cujo único dever é procriar.
As aias não são consideradas mulheres, elas são posses de seus Comandantes. A cada período fértil passam por um ritual grotesco, na qual são estupradas por seus donos na presença das Esposas a fim de serem “fertilizadas”. Apesar disso ser aia é um destino melhor do que as não-mulheres encontram, aquelas que não podem ter filhos, as homossexuais, viúvas e feministas, condenas a trabalhos forçados nas colônias, lugares altamente radioativos, onde a vida é ceifada em menos de três anos.
A ascensão de políticas de extrema direita ao redor do mundo, a começar pela eleição de Donald Trump em 2016, fizeram ecoar mais forte do que nunca, em discursos conservadores carregados de retrocessos e ataques às minorias, o rastro dos traços distópicos de Margaret Atwood.
Alarmadas pela perspectiva de perderem novamente os avanços de direitos conquistados, milhares de mulheres saíram pelas ruas de Washington, capital dos Estados Unidos, em protestos que ficaram conhecidos como a Marcha das Mulheres.
A criação de Margaret foi amplamente lembrada nas manifestações pelas ativistas que pintaram em seus cartazes dizeres como “Make Margaret Atwood Fiction Again”, “The Handmaid’s Tale is not an instructional manual” e “No to the republic of Gilead” (Faça Margaret Atwood ficção novamente, O Conto de Aia não é uma manual de instrução e Não à República de Gilead, respectivamente).
Após os recentes acontecimentos, a repressão exercida pela República de Gilead na ficção começou a pairar sobre a realidade. Isso é aterrador mas não chega a ser uma surpresa, como constatou a repórter do The New Yorker, Rebecca Mead, ao escrever um perfil detalhado de Margaret Atwood para a revista.
Rebeca teve a oportunidade de explorar algumas das 475 caixas de arquivos pessoais da escritora doadas à Thomas Fisher Rare Book Library, da universidade de Toronto. Em uma destas caixas estão reunidos inúmeros arquivos de artigos publicados em jornais da década de 80, entre eles notícias sobre a proibição do aborto e da pílula anticoncepcional na Romênia, sobre a queda de nascimentos no Canadá, tentativas dos Republicanos, partido conservador americano, de reter fundos federais destinados a manter as clínicas de aborto, relatos sobre ameaça à privacidade através de cartões de débito, uma congregação católica no estado de Nova Jersey em que as esposas eram chamadas de “handmaidens” e rituais de procriação retirados de passagens da Bíblia.
Em seu processo de escrita Atwood tem o cuidado de incluir apenas fatos que realmente aconteceram na história ou que podem ser comparados com casos modernos. Não à toa a leitura do livro é permeada por certa familiaridade em seus acontecimentos, em em entrevista ao portal da Boston Review a autora declarou:
Em um livro eu não coloco nada que as pessoas já não tenham feito em algum momento, em algum lugar. E em alguns países no mundo, essa é uma realidade agora.
A distopia de Margaret Atwood incomoda, porque traz consigo uma previsão pessimista do futuro, de um mundo pautado pelo totalitarismo, em que a opressão social é a regra. Previsões são assustadoras, mas sua confirmação é incerta e a ideia de que os caminhos mostrados por ela podem ser mudados é reconfortante. Em O Conto de Aia este conforto não existe, pois entre suas páginas não estão previsões de um futuro incerto, mas o rascunho de um presente em curso.
O plano de fundo é quase o mesmo de toda distopia, um mundo mudado profundamente por uma guerra apocalíptica que transformou a sociedade em uma cadeia hierárquica. Mas ao contrário de suas semelhantes, Gilead é composta por classes que muito se assemelham a nós mesmos. Classes que foram criadas para cutucar, incomodar e nos fazer pensar.
Não há grandes cenas de luta, jovens com superpoderes ou um plot twist daqueles que nos fazem tirar os olhos do livro por alguns segundos e respirar fundo, mas isso não importa realmente, a escrita nos envolve e nos mergulha nas impressões da personagem principal de tal forma que é impossível não querer ficar e descobrir os mistérios de Gilead. A autora revela seus mistérios em porções pequenas, como se jogasse iscas para que nos levassem até as questões centrais. Nos identificamos sem saber exatamente com o que, nos atraímos por uma história sem saber para onde ela vai ou como começou.
As outras distopias são movidas a esperança personificada em personagens mártires, que são diferentes, poderosos e colocados no mundo para desfazer o mal feito. Neste livro, no entanto, a desesperança se agarra em cada página, não existem super seres humanos capazes de libertar a todos, porque é difícil refazer algo tão natural, tão enraizado. Constantes de nossa sociedade, que nos passam despercebidas, ou, simplesmente, são ignoradas para não macularem a ordem das coisas, são extremados em Gilead. Não existem super vilões a serem combatidos, o que foi usado para subverter a todos são mazelas que sempre estiveram entre nós; o machismo estrutural, a religiosidade extrema, a descrença na máquina do poder.
Na atual conjuntura brasileira a história de Margaret Atwood é como um retrato de nós mesmos, defensores do estado quo, daquilo que deve parecer natural, daquilo que é feito para ordenar, oprimir e controlar. Aquilo que nos acostumamos e tomamos como certo e que faz da realidade do livro possível.
*Ilustração desenvolvida por Giullia Fernandes especialmente para o Vira-Tempo.
Escrito em 1985, o romance distópico O conto da aia, da canadense Margaret Atwood, tornou-se um dos livros mais comentados em todo o mundo nos últimos meses, voltando a ocupar posição de destaque nas listas do mais vendidos em diversos países. Além de ter inspirado a série homônima (The Handmaid’s Tale, no original) produzida pelo canal de streaming Hulu, a ficção futurista de Atwood, ambientada num Estado teocrático e totalitário em que as mulheres são vítimas preferenciais de opressão, tornando-se propriedade do governo, e o fundamentalismo se fortalece como força política, ganhou status de oráculo dos EUA da era Trump. Em meio a todo este burburinho, O conto da aia volta às prateleiras com nova capa, assinada pelo artista Laurindo Feliciano.
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