Quando um fã encontra o seu autor favorito é costume soltar um “eu leio você!” vigoroso e excitante. Sentada em uma das cadeiras de plástico a minha frente, no espaço Missão do Centro Cultural São Paulo, onde dali a alguns minutos participaria de uma discussão sobre a volta das comédias românticas, conheci uma escritora que transformou a antiga saudação em um sonoro e acolhedor “eu me leio em você” impregnado de pertencimento.
Enquanto crescia na capital mineira Belo Horizonte ser escritora não era um dos almejos de Olivia Pilar (28). A garotinha que gostava de escrever nunca imaginou que seus rabiscos no papel poderiam se transformar em profissão, refletir suas transformações ao longo dos anos e representar um mundo de possibilidades para muitas garotas como ela.
Olivia é mulher, negra e bissexual e apesar de sua infância e adolescência serem povoadas por livros com personagens e autores negros trazidos por suas tias ativistas do movimento afro, a menina que foi um dia não encontrava dentre as milhares de mocinhas, vilãs, agentes secretas ou gêmeas do mal, alguém como ela. Foi só na fase adulta que a leitora se viu pela primeira vez em personagens literários.
Se viu em Rani do livro Rani e o Sino da Divisão, criada pelo brasileiro Jim Anotsu. Se viu em Grace, protagonista de How to Make a Wish, da autora americana Ashley Herring Blake. Se viu na jovem Ifemelu e Obinze de Americanah, escrita pela nigeriana Chimamanda.
Convidei-a a imaginar como teria sido sua infância e adolescência se ela tivesse a oportunidade de ler as histórias que ela mesma escreve hoje. Começamos, então, a vaguear por sua vida.
Olivia vem de uma família classe média alta, estudou em escola e faculdade particulares, fez curso de inglês e intercâmbio. Teve muitas amigas brancas e amigas negras que não se consideram negras. Não via mulheres negras na Malhação, nem na novela das 9 ou comerciais de margarina com famílias negras, não tinha produtos para o seu tipo de cabelo e maquiagens para o seu tom de pele, camuflar um arranhão com um curativo da sua cor é algo impensável até hoje.
Eu costumo dizer que esse meio branco me contaminou, que me impediu de ver quem eu era. Como eu não tinha representatividade nem na literatura, nem na televisão e nem no cinema, isso diminuía ainda mais o alcance do que eu imaginava que poderia ser. A gente se sente um peixe fora d’água a vida inteira sem saber o porquê.
Enquanto encaro o lindo cabelo cacheado de Olivia, se impondo em sua cabeça como uma coroa, ela conta que ao passar por uma transição capilar o seu cabelo entrou em transição e ela também. Deixando que seus cachos florescessem novamente ela ascendeu em si uma força que não cabia dentro dela, era preciso dividi-la.
O quando, onde, como e o por que dessa empreitada começa em 2016 para 2017 quando uma amiga a chamou para escrever uma fanfic sobre a girlband americana Fifith Harmony. Logo em sua primeira história o casal protagonista era formado por duas das integrantes da banda.
No meio do caminho postou-se um concurso literário que a encorajou a escrever seu primeiro conto. Não ganhou o concurso, mas ganhou o impulso do qual precisava para escrever mais. Desde então sua cabeça não parou de produzir enredos com garotas como ela.
A desbravadora desse caminho nem sempre o explorou com certezas e segurança, pelo contrário, ela caminhava agarrando-se a timidez e as dúvidas sobre sua própria capacidade. Mas uma janelinha brilhante abriu-se para ela e por meio do anonimato a mostrou novas possibilidades e o ímpeto de se desenvolver como escritora.
Na internet a gente se esconde, então, eu publiquei de forma independente. Publicando na Amazon eu tinha feedback apenas se alguém fosse atrás de mim ou me marcar em alguma coisa. Também tem uma dificuldade das pessoas ligarem a história a você, demorou para as pessoas começarem a me reconhecer pessoalmente. Isso para mim foi fundamental.
Hoje, Olivia é representada pela agência Página 7 e tem inúmeros contos e participações em coletâneas, a maioria deles contando as histórias de mulheres, negras e bissexuais. Entre Estantes, Tempo ao Tempo, Dia de Domingo, a coletânea Qualquer Clichê de Amor, Formas Reais de Amar e Pétala abraçam e acalentam as mulheres que um dia se sentiram diferentes e inadequadas.
A essa altura Olivia já tinha demonstrado ser a personificação da nova literatura jovem brasileira. Vinda da internet, de histórias grandiosas divulgadas ao público sem a chancela de uma grande editora, com protagonistas fora dos padrões predominantes e, acima de tudo, representando a resistência aos discursos repetidos exaustivamente que procuravam a anular.
É algo que acontece com todas as minhas amigas escritoras negras, duvidar que a nossa história tem algum valor e que tem alguém que queira escutá-la.Como são histórias focadas em mulheres negras, sempre fica um ‘será que alguém vai querer saber o que essa mulher negra está escrevendo? Será que alguém se importa e se interessa pela história de uma personagem negra?’ É um bloqueio interno nosso de achar que a nossa história não vale tanto quanto as outras.
Mas vale e vale muito, vale tanto que suas histórias magnetizam atenção de uma sólida base de leitores formada pela identificação com os personagens. Olívia afirma que suas personagens contribuem para preencher essa lacuna na literatura e dar a dezenas de leitoras a sensação de se sentirem representadas.
Quando eu falo que eu escrevo histórias de mulheres negras apaixonadas por outras mulheres, atrai as pessoas a lerem.
Em setembro a autora participou da coletânea organizada pela editora Plataforma 21, Tudo tem uma Primeira Vez, ao lado dos escritores Ale Santos, Bárbara Morais, Fernanda Nia, Jim Anotsu e Vitor Martins. Esse é o seu primeiro livro físico.
Para Olivia o próximo desafio é continuar escrevendo e finalmente estabelecer uma rotina de escrita.
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