Nos últimos meses a literatura brasileira tem visto ruir dois dos impérios livreiros do país. As livrarias Cultura e Saraiva entraram em recuperação judicial e fecharam inúmeras de suas lojas. Para muitos esse é o prenúncio do apocalipse literário em um país cuja população não tem o costume de ler regularmente.
Entretanto, para Paula Drummond, editora de aquisição e conteúdo dos selos Rocco Pequenos Leitores, Rocco Jovens Leitores e Fantástica Rocco, o Brasil não está passando por uma crise de leitores e sim de livrarias:
É importante dizer que a maior parte das livrarias e editoras no Brasil tem donos que são os mesmos há anos, com donos que faziam as mesmas coisas há 50 anos. Então eu diria que esse momento, talvez, não estaria sendo tão complicado se não fosse empresas familiares, se tivesse tido uma oxigenação, tentativas de fazer outras coisas.
Para a escritora e editora Iris Figueiredo o mercado brasileiro é muito apegado a tradicionalidade e se agarra a maneiras de trabalhar do passado que hoje não dão mais certo. Iris citou o estudioso inglês Laurence Hallewell:
Em sua tese de mestrado Hallewell disse que nos anos 50 o Brasil enfrentava uma crise editorial, mas que o Brasil está sempre enfrentando uma crise editorial. É muito raro você ter momentos bons para divulgação e publicação como em 2013 e 2016, para propagação do livro é muito mais comum momentos como o atual .
Em meio ao cenário caótico um público com uma história recente, marcada por preconceito e certa negligência do mercado, nada contra a maré das crises nas livrarias e na economia e se solidifica como público promissor.
A juventude brasileira nunca leu tanto quanto atualmente, segundo a pesquisa Retratos da leitura no Brasil, realizada em 2015 pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o IBOPE Inteligência, dos mais de 24 milhões de jovens entre 11 e 17 anos entrevistados, 84% dos jovens entre 11 e 13 anos e 75% dos entrevistados entre 14 e 17 anos se declaram leitores. Estes números são consideravelmente superiores dos 56% de leitores da população brasileira como um todo, apontada pela pesquisa.
Esse fenômeno pode ser visto nos principais eventos literários do país abarrotados de adolescentes e jovens adultos que abocanharam uma porcentagem considerável do público total da Bienal Internacional do Livro, por exemplo.
Livros feitos especificamente para o público juvenil e jovem adulto são uma novidade no mercado, a saga Harry Potter, lançada entre 1997 e 2007, é considerada o marco inaugural desse segmento. J.K.Rowling foi a primeira entre os autores a escrever uma história na qual seus personagens começam a aventura ainda na infância e terminam na adolescência, aos 16 anos.
Ao longo dos 22 anos desde a sua fundação a literatura jovem ganhou proporções gigantescas, com inúmeras produções elevadas ao status de best-sellers, adaptações cinematográficas de sucesso e a valorização entre o mercado editorial.
Para Paula o mercado jovem tem duas importâncias atualmente:
A primeira importância é movimentar dinheiro, porque jovens são engajados, jovens são apaixonados, jovens defendem o que amam. A segunda é que o jovem traz representatividade para o mercado, o mercado YA hoje é mercado de vanguarda, é quem está trazendo as discussões.
A busca pela representatividade atrelada a crise econômica brasileira fez a literatura jovem nacional ganhar mais espaços nas prateleiras das livrarias e dos leitores. Para Iris o mau momento na economia tornou inviável a compra de livros no exterior e os olhos das editoras voltaram-se para dentro de casa, recheando o mercado de livros brasileiros que encontram um público ávido por histórias baseadas em suas realidades.
Protagonistas adolescentes indo a escola de carro aos 16 anos, passando pela ansiedade dos bailes de formatura e abrindo seus armários escolares não são mais suficientes para nossos leitores.
Jana Bianchi, do canal Curta Ficção, vê a literatura como um ponto de identificação.
Quando você está lendo literatura jovem e alguém te mostra uma história com o qual você se identifica, está na hora de você embarcar nesse mundo novo.
Seu companheiro de podcast, Lee imagina o bruxinho mais famoso do mundo com um toque brasileiro:
Harry Potter funciona porque a J.K Rowling soube escrever muito bem os conflitos dos personagens, isso é universal, o primeiro amor, mudar de escola, família.. e tem toda a questão mágica. Agora imagina se você tivesse uma coisa tão bem escrita, tão bem caracterizada e tão bem feita no interior de São Paulo ou magia no sertão nordestino?
O leitor jovem contemporâneo se desgarrou do sentimento colonizado de que o Brasil não produz coisas tão boas quanto os estrangeiros. Hoje ele quer e exige ser representado em toda a sua brasilidade, sexualidade e forma de pensar.
As editoras apostam cada vez mais em autores nacionais e a resposta do público reflete-se nas filas e gritos animados por autores brasileiros em eventos como Bienal e FLIPOP.
Paula conta que livros jovens adultos contemporâneos fazem muito sucesso entre os leitores. Na Rocco, livros com a temática LGBT são acolhidos pelo público e, apesar de nem sempre estarem entre os best-sellers, mantém números de vendas robustos.
Eu acho que o jovem está querendo ler personagens diversos, com personagens com diversidade sexual, consciência racial, diversidade racial e que tenham histórias que se conectam com eles.
A escritora, editora e tradutora, Sofia Soter tem na escrita a oportunidade de acolher jovens que pouco se conectam com as imposições e fantasias de uma juventude perfeita:
Eu não gosto da ideia de que literatura para adolescente é para ensinar tudo certinho, eu não tive uma adolescência em que eu fiz tudo certinho, que fiz tudo direito. Para mim o que é importante é que eu não fui certinha e você provavelmente também não e tudo bem, é preciso entender e também dizer ‘mas isso não significa que vai ser isso para sempre’. É um merda, você vai fazer muita, mas depois outras coisas acontecem.
Ao contrário do esperado a internet não acabou com os livros, ela os expandiu e derrubou as barreiras que dividiam escritores sonhadores das oportunidades de serem lidos. Extensas redes de escritores independentes e leitores engajados, formadas no mundo digital, tornaram esse ambiente uma verdadeira mina de talentos a serem lapidados.
Em seu trabalho como editora da Rocco Paula procura histórias em potencial nas plataformas digitais, por meio de três métodos de garimpo: o primeiro é procurar por opiniões dos internautas nas redes sociais.
O segundo é transformar o Wattpad, plataforma de compartilhamento de produções textuais, em um site de buscas. A editora procura por histórias com temáticas específicas em busca de publicações em potencial.
A última técnica mostra como a internet se tornou uma fonte importante de autores talentosos. A editora procura nas feiras de livros internacionais, como a de Frankfurt, na Alemanha, indicações dos agentes do Wattpad.
Eu sempre gosto de encontrar (nas feiras) os agentes que tentam vender histórias do Wattpad. Existem dados muito bons também, no banco de dados do Wattpad eles conseguem contabilizar quanto tempo as pessoas demoram para ler uma história (você sabe se aquela é uma história que flui), quantas visualizações, de qual país e quais as tags mais buscadas no Brasil.
Para Paula a internet fomentou o gosto pela leitura e pela escrita entre os brasileiros:
A internet e a fanfic começaram a dar um gás para o pessoal querer escrever. Nós temos mais autores jovens escrevendo coisas que os jovens querem ler e, consequentemente, mais leitores jovens, até porque com a internet se cria um engajamento maior.
Sofia vê em profissionais como Paula o incentivo necessário para a renovação do mercado e o surgimento de uma nova geração de autores talentosos vindos das fanfics:
Tem uma galera que está trabalhando no mercado editorial, que foi formado nessa base de fandom e fanfic e que sabe valorizar isso e sabe o quanto tem escritores maravilhosos que pode trazer para o mercado.
Thalita Rebouças, Pedro Bandeira e seus personagens agora dividem espaço com jovens poetas e contadores de história que usam o Brasil e a realidade de sua juventude para fazer arte.
Em 2018 a ficção nacional mais vendida no Brasil foi o livro de poesias Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente, organizada pelo estudante Igor Pires.
Na Bienal do Livro do Rio de Janeiro o livro Conectadas, da autora Clara Alves, com um casal protagonista composto por duas adolescentes, e Céu sem estrelas, escrito por Iris Figueiredo, preencheram os postos de mais vendidos da editora Seguinte, um dos maiores selos jovens do país.
Na FLIPOP 2019 a Plataforma 21 anunciou a coletânea Todo mundo tem uma primeira vez, formada por seis autores brasileiros, que contribuíram com histórias de gêneros diferentes sobre as primeiras vezes de seus personagens jovens.
A literatura brasileira tende cada vez mais a dividir a sua força motriz com os livros carregados do revolucionário, do representativo e do ponto de vista das novas gerações. A maneira de se produzir histórias mudou e a maneira do autor se relacionar com seus leitores foi modificada pela proximidade das novas tecnologias, o que não mudou foi o amor dos indivíduos por uma boa história. Os novos tempos chamam pela expansão desse amor e pela expansão da literatura juvenil e jovem adulta.
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